As opiniões a respeito da escola são uma importante ferramenta que ajuda a compreender tal instituição, o que ela significa para a sociedade que a cria e na qual ela sobrevive. Segundo Carlota Boto, “conhecer a escola e sua história requer o reconhecimento de um universo, a portas fechadas, escondido, fugaz e travesso” (BOTO, 1998, p. 162).
É pretensão deste texto apreender não apenas o que a Escola Agrícola Benjamin Constant dizia que fazia do ponto de vista das práticas disciplinares, mas aquilo que ela efetivamente fazia. Buscar entende-la a partir de algumas práticas dos seus agentes, “apanhando-lhe os dispositivos de organização e o cotidiano” (CARVALHO, 1998, p. 32), evidenciando a perspectiva dos seus agentes educacionais, de modo a recortar alguns dos procedimentos disciplinadores ali praticados.
A fim de cumprir os objetivos aos quais se propõe, este texto lança mão de uma queixa crime e maltratos funcionais que tramitou na Comarca de São Cristóvão no ano de 1953, em face de denúncias apresentadas pelos estudantes José Cledisvaldo Malta e Rivaldo Moura Barros contra o seu diretor, professor João Fernandes de Sousa. Os processos judiciais são uma fonte fundamental para a compreensão da história das práticas escolares. Eles revelam muito dos atores da vida escolar e as contradições entre o discurso político e intelectual sobre o temário educacional, bem como a respeito das ações efetivamente implementadas na escola, principalmente num contexto sob o qual “o ato pedagógico era tido como um gesto de educação da vontade” (BOTO, 1998, p. 164).
A Escola Agrícola Benjamin Constant teve sua origem no Patronato São Maurício, em 1924. Oferecia curso de aprendizes e artífices a crianças e adolescentes com problemas de ajustamento social e emocional. Dez anos após a sua instalação, o Patronato foi transformado em Aprendizado Agrícola de Sergipe recebendo, cinco anos depois, em 1939, a denominação de Aprendizado Agrícola Benjamin Constant. Em agosto de 1946 a Lei Orgânica do Ensino Agrícola estruturou o ensino técnico profissional no Brasil. O Aprendizado recebeu nova denominação: Escola de Iniciação Agrícola Benjamin Constant. Ministrava o curso de Iniciação Agrícola, qualificando em dois anos operários agrícolas e oferecendo também o curso de Mestria Agrícola. O nome de Escola Agrícola Benjamin Constant foi atribuído no ano de 1952, quando a instituição passou a ministrar os ensinos primário e ginasial. Em 1957 a Escola Agrícola foi transformada em Escola Agrotécnica Benjamin Constant e começou a formar técnicos agrícolas em nível médio. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 4.024/61) fez com que, em 1964, outra vez fosse mudada a denominação para Colégio Agrícola Benjamin Constant. A última alteração no nome da instituição aconteceu em 1979, quando passou a chamar-se Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão.
Até 2014, único estabelecimento escolar do Estado de Sergipe a oferecer cursos de nível médio destinados a formação de técnicos para o setor primário da economia, a Escola Agrícola adota, desde o ano de 1924, o regime de internato, uma vez que situa-se na zona rural do município de São Cristóvão (antiga capital do Estado de Sergipe), distante 16 quilômetros da cidade de Aracaju. Além disso, também fundamental para a manutenção do regime de internato é o fato de que a Escola desde o início das suas atividades foi destinada a receber alunos oriundos do meio rural, os filhos de famílias pobres, meninos de rua e também aqueles que não conseguiam se ajustar socialmente. Ela recebia, principalmente, alunos pobres de Aracaju e de municípios do interior dos Estados de Sergipe, Bahia e Alagoas.
Em agosto de 1953, o diretor da Escola Agrícola Benjamin Constant expulsou os alunos Cledisvaldo e Rivaldo, alegando insubordinação. Os dois estudantes encaminharam uma carta ao juiz de menores informando que foram excluídos dos quadros da escola porque não suportavam mais os maus tratos do diretor João Fernandes. O clímax do conflito foi um castigo imposto pelo diretor aos dois estudantes, no dia dez do mesmo mês: permanecerem em pé no pátio da escola, das nove horas da noite às cinco da manhã do dia seguinte. Os alunos afirmam que depois do castigo, que consideraram injusto e cruel, foram expulsos da escola porque não quiseram “trabalhar 8 horas no dia do estudante, dia 11 de agosto”. Além disso, denunciaram outras práticas de imposição de castigos cruéis por parte do diretor da escola: “castiga os alunos de um modo desumano. Sairemos daqui amanhã mais ficará [sic] aqui muitos colegas que são vitimas das brutalidades do diretor.” Dentre as acusações que fizeram, afirmaram que o diretor utilizava as oficinas de madeira da escola para a produção de palmatórias. No conjunto de práticas escolares, as disciplinares, ainda pouco estudadas entre nós, certamente ocupam uma posição destacada, à medida que definem condutas a inculcar através da incorporação de comportamentos.
Para Dominique Julia, “normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação”. (JULIA, 2001, p. 10-11). No caso da Escola Agrícola Benjamin Constant, o corpo profissional que cumpria as determinações do diretor era constituído por professores, quase todos com formação de engenheiros agrônomos e por bedéis e outros funcionários subalternos responsáveis pelas atividades da fazenda experimental. Os estudantes que sofriam a ação disciplinar da escola eram, predominantemente, órfãos e filhos das camadas médias inferiores das cidades e de pequenos proprietários rurais. Todos esperançosos de que a formação como técnicos agrícolas pudesse oferecer a possibilidade de acesso aos estudos para uma futura e promissora carreira de engenheiro-agrônomo. (continua)